Antonio José de Souza

MANIFESTE SUA IDENTIDADE, DIGA SUA COR/RAÇA

 

Afinal, ser ou não ser?

 

Eis a questão: ser ou não ser. Existir ou não existir. Finalmente, viver ou morrer (SOUZA, 2018). Provocado pela citação que é, também, uma paráfrase, retomo o episódio acontecido no segundo semestre do ano 2018 com a cantora Fabiana Cozza – filha de mãe branca e pai negro – que se notabilizou por seu canto popular e, por isto, tem sido reconhecida por críticos especializados e pelo público como uma intérprete de proeminência na música brasileira contemporânea, projetando a nossa cultura, especialmente, a cultura negra, em palcos internacionais. No final de maio do mencionado ano, Cozza havia sido anunciada como aquela que interpretaria Dona Ivone Lara (1922-2018) no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro”, entretanto, depois de um tempo, ela renunciou ao papel devido às muitas críticas e protestos por ela não ser tão preta quanto a sambista. Em seu perfil de uma rede social, Fabiana publicou um comentário em que, entre outras coisas, esclarecia a decisão:

 

“Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente ‘politicamente correta’. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias. Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.

 

A cor e o lugar identitário de Fabiana Cozza é consequência das engrenagens responsáveis pela formação do povo brasileiro diverso na cor da pele, das crenças e dos costumes em razão da mestiçagem, posto que “[...] os povos nunca cessaram de se misturar uns com os outros. Daí a evidente diversidade dos tipos físicos [...]” (D’ADESKY, 2009, p. 45). No entanto, pode-se apreender, do relato acima, o aspecto dicotômico de raça – ser negro, ser branco – como se pudesse ser uma coisa ou outra, a partir de uma pureza estanque e impermeável que, como já se sabe, não é real; pois, o biológico intercambia-se em uma constante. Consequentemente, conclui-se que raça é um conceito inoperante do ponto de vista genético (MUNANGA, 2003; D’ADESKY, 2009, SCHWARCZ, 2012), todavia, bastante pujante socialmente por ser uma raça erigida no simbólico (D’ADESKY, 2009; SCHUCMAN, 2018), um construto histórico, político-ideológico e não biológico (MUNANGA, 2003; SCHWARCZ, 2012). Por essa razão, no fragmento, a compreensão de raça aparece como uma variável operacionalizada pelo “outro”. 

 

As palavras de renúncia da cantora expõem o paradoxo de uma mestiçagem que eventualmente aproxima e une o tipo moreno-mestiço ao negro-retinto, mas, quando evidenciada as nuanças da pele que pigmenta um mais que o outro, tem-se a ruptura da “indiferenciação” racial, pois, segundo D’Adesky (2009, p. 69), a “[...] mistura sistemática que privilegia o tipo branco e, secundariamente, o tipo moreno mestiço [...] vem ferir o indivíduo negro que não corresponde ao tipo ideal [...].”. Por conseguinte, a abnegação de Fabiana Cozza ao papel da grande dama do samba, aconteceu por uma ressalva que considerava as marcas da raça no corpo da cantora insuficientes. Porém tem, também, uma segunda negação, de tipo memorialístico, histórico e cultural, aspectos que constituem as identidades de Cozza e, por esta razão, ela manifesta sua sutil reivindicação através da menção aos antecedentes históricos quando diz: “[...] muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias [...]”, buscando no passado a reafirmação das suas identidades revogadas (WOODWARD, 2014).

 

Lia Schucman (2018), em seu livro Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor, dedica um capítulo para analisar a cor de Amanda, filha de pai branco e mãe negra, na intimidade de uma família inter-racial. De fato, podem-se alegar algumas correspondências entre o ocorrido com Cozza e Amanda, contudo com uma diferença eloquente, visto que o primeiro caso se dá com a participação da opinião pública, o que não acontece no segundo contexto por ser ambientado em um cenário familiar. Avançando para o capítulo A cor de Amanda: entre branca, morena e negra, Schucman (2018) analisa a seguinte configuração familiar: o pai, Alfredo, branco, 53 anos; a mãe, Janice, negra, 50 anos e a filha Amanda, 25 anos que não sabia se autoclassificar racialmente. Na verdade, o enredo protagonizado por Amanda demostra uma “locomobilidade” racial, confirmando “[...] que a terminologia racial é sumamente subjetiva e situacional [...]” (SANSONE, 1993, p. 67), afinal, no início da entrevista, a mãe de Amanda a classifica como “branca logo ao nascer”. Entretanto, logo depois diz classificá-la, na época atual, “como negra”. Em outro momento, diz considerá-la “branca”, o que mostra a característica processual das terminologias raciais no Brasil. De todo modo, o pai, Alfredo, classifica Amanda como “branca” (SCHUCMAN, 2018). Quando Amanda é questionada sobre sua autoclassificação ela responde:

 

“[...] Não sei. Nunca sei responder, porque não sou negra de fato, como várias das minhas amigas são. Não só no quesito pigmentação, mas no quesito de sofrer preconceitos. Eu entro na livraria Cultura, ninguém vai ficar me seguindo. [...] Ao mesmo tempo, em outros espaços, quando eu morei em Portugal, eu era, não totalmente negra, mas era afrodescendente. Uma não branca. E sofri uma série de coisas, assim, relacionada à sexualização do corpo. Não só por ser brasileira, mas por ter uma pigmentação diferente, ser puta, estas coisas. Então, eu não sei lidar ainda com a definição. [ENTREVISTADORES:] Mas, Amanda, você se sente branca, por exemplo? [AMANDA]: Não. Não me sinto. Mas também não me sinto negra. Sei lá, é difícil. Não sei definir mesmo. [ENTREVISTADORES:] Você falaria mestiça? [AMANDA:] É que eu não sei. Eu não tenho propriedade para falar destes termos ainda. Não sei. Não pesquisei o suficiente.” (SCHUCMAN, 2018, p. 71-72)

 

A dificuldade de Amanda em se autoclassificar ajuda a entender o ocorrido com Cozza pela questão do fenótipo, ou melhor, a pigmentação da pele que, para as duas personagens, não é tão escura. Diferente dos Estados Unidos – onde o preconceito é “de origem”, ou seja, “[...] quem descende de uma família negra [...] e a despeito da aparência, é sempre negro [...]” (SCHWARCZ, 2012, p. 100); aqui, no Brasil, o preconceito é “de marca”, importando a gradação cromática, apenas em fusão à situação econômica e social, “[...] em outras palavras, a cor e a renda estão estreitamente relacionadas [...].” (SANSONE, 1993, p. 50).

 

Amanda se percebe impossibilitada de definir-se negra porque não sofreu discriminação, deixando escapar a consciência dos privilégios que pessoas “lidas” enquanto não-negras adquirem em uma sociedade estruturada pelo racismo associado à tez escura e o fenótipo africano. Tal perspectiva evidencia que na relação de Amanda com pessoas negras de pigmentação acentuada, bem como com membros dos movimentos sociais, habita a comprovação do seu “não lugar” racial, dado que há uma “[...] ‘pigmentocracia’ organizada segundo um continuum de cor que vai do ‘claro’ ao ‘escuro’, tendo o louro nórdico na extremidade ‘melhor’ e o africano puro na extremidade ‘mais feia’.” (SANSONE, 1993, p. 67, grifos do autor).     

 

Tal discussão fez-me lembrar de um relato contado por Bauman (1925-2017) sobre um censo realizando na sua terra natal, a Polônia, um pouco antes do início da última guerra mundial. Ele mencionava que, nessa atmosfera, a sociedade polonesa era multiétnica e em determinadas “[...] partes do país eram habitadas por uma inusitada mistura de grupos étnicos, credos religiosos, línguas e costumes.” (BAUMAN, 2005, p. 23). Em suma, os funcionários do censo diziam-se ter falhado, já que os entrevistados não entendiam as perguntas feitas sobre “nação” ou sobre “ter” uma “nacionalidade”, respondendo teimosamente: “[...] ‘somos daqui’, ‘somos deste lugar’, ‘pertencemos a este lugar’. Por fim, os administradores do censo tiveram de se render e acrescentaram ‘pessoas do lugar’ à lista oficial de nacionalidades.” (BAUMAN, 2005, p. 24, grifos do autor).

 

A reboque dessa narrativa, advirto que, no caso da Fabiana Cozza e Amanda, o veredito para suas questões identitárias veio pelos “outros”. A primeira recebeu o decreto de um “não lugar racial” que a desqualificava para interpretar Dona Ivone Lara, já que lhe faltava a negritude correspondente, logo, negra de menos, branca de mais. A segunda experimenta a problemática do “não lugar” a partir da classificação racial dos pais – um casal inter-racial. Assim, a autoridade familiar (aqui representada pelo pai branco, Alfredo) define-a taxativamente como branca. A mãe (Janice, que é negra), de forma “modulante”, contribui para a formação de uma identidade confusa de Amanda que, na intimamente, ver-se negra; publicamente como branca e, em outros momentos, aceita o rótulo social de “morena”, que junto com o pardo pode ser uma combinação de coisas, uma espécie de etc. do censo (SANSONE, 1993; SCHWARCZ, 2012).

 

Para os dois casos, vale lembrar que as identidades são demandas imbricadas com a política, tendo como cerne a natureza relacional na qual residem os nossos sentimentos e ações. Por essa razão, a comunicação social acontece a partir da dinâmica relacional de ver e ser visto; um detalhe óbvio, mas não desprezível, afinal, como consequência dessa associação, eventualmente, haverá uma intencionalidade do “outro”, sugestionando o que é bom, bonito, ruim e feio. Isso implica, como ressalta Stuart Hall (1932-2014), no fato de que as identidades são engendradas na diferença e não fora dela; na relação com o “outro”, funcionando como pontos de identificação e exclusão (HALL, 2014). Na minha perspectiva, existe nos dois exemplos o caráter impositivo e chancelador desse “outro”. 

 

Os episódios de contestação identitária, protagonizados por Cozza e Amanda têm um substrato nas desigualdades persistentes da sociedade brasileira que marginalizam indígenas, negros e mestiços há séculos. No entanto, de acordo com Florestan Fernandes (2017, p. 92), “[...] a participação do negro [preto] e do mulato [moreno-mestiço] na desigualdade é desigual.”. Nesse sentido, o referido autor chama atenção, em um texto escrito no início da década de 1980, para o fato de que, ao nível do empregador, encontrava-se um contingente maior de moreno-mestiço que de preto – o mesmo acontecia no âmbito das oportunidades educacionais. Quer dizer, mesmo o moreno-mestiço sofrendo uma agressiva discriminação por parte do branco, quando era feita a comparação entre preto e moreno-mestiço, havia uma discriminação em favor do moreno-mestiço (FERNANDES, 2017).

 

Um paralelo e um relato de experiência

 

A imersão nessas reflexões, fez-me lembrar de uma experiência pedagógica que assinalou o início do meu interesse pelo estudo e articulação entre questões étnico-raciais, a educação e a Lei Federal nº 10.639 de 2003 – que completou sua maioridade no dia 9 de janeiro de 2021. Lá pelos idos da primeira década dos anos 2000, eu desenvolvi com os meus alunos – na época do 6º ano – uma atividade simples que consistia em fazer um autorretrato em folha de ofício com giz de cera. A orientação que eu dei foi que eles/elas fizessem os seus desenhos a partir de como se viam no espelho, sem retoques. Feito isso, solicitei que em uma outra folha, eles/elas fizessem os “retratos”, agora, a partir de como gostariam de ser, imaginando-se “outras” pessoas, focando nos aspectos físicos. Abaixo, alguns desses autorretratos:

 

Autorretratos (vistos no espelho)         Autorretratos (imaginados)


           

 


Fonte: Acervo pessoal

 

Devo confessar que antes da realização dessa atividade com os meus alunos/alunas, eu tinha elaborado uma hipótese não comunicada a eles/elas, qual seja: de que teriam sido alcançados/as de algum modo pelo branqueamento e, sutilmente, portariam uma aversão à raça negra. Afinal, o que seria capaz de corroer a identidade de uma criança, senão algo tão silencioso e sorrateiro como a ideologia do branqueamento? Algo tão austero o bastante para instigar o moreno-mestiço à autorrecusa, escondendo traços de uma ascendência negra e internalizando o fetiche pela tez branca, olhos verdes e azuis, cabelos lisos ou loiros. Como podemos verificar, tal hipótese se cumpriu, porque – nessa turma pequena de uma escola particular, urbana de alunos/as não-brancos/as –, alguns se reconheceram (se viram) nas cores “amorenadas”, mas, a maioria imaginou-se com marcadores da aparência branca, seguindo a tal “pigmentocracia”, destacada por Sansone (1993), através do continuum de cor na qual o branco é o “ideal” e o preto é “imperfeito”.

 

A motivação para essa atividade-aula veio-me após a leitura de uma matéria intitulada O silêncio vai acabar, publicada na Revista Nova Escola, nº 120, março de 1999; responsável por provocar-me as primeiras sistematizações e constatações acerca das experiências de exclusão e negação das minhas identidades no ambiente escolar, bem como na literatura infanto-juvenil que eu lia quando criança, pois “[...] sabe-se que a discriminação racial ocorre também pela invisibilidade, pelos silêncios e pelas ausências, quer nos textos literários, quer nas imagens, nas ilustrações que ‘ensinam’ a desvalorização do negro [...]” (FOSTER, 2015, p. 106, grifo da autora). A anunciada revista trazia estampada em sua capa a figura de um jovem negro amordaçado, com o seguinte letreiro: “ELE VAI COMEÇAR A GRITAR!” e esse grito ressoava na reportagem sobre o trabalho de pesquisa acerca do racismo, do preconceito e da discriminação na educação infantil, de autoria da pedagoga Eliane Cavalleiro, em que ela entrevistou professores, funcionários, alunos e seus familiares. Os depoimentos extraídos constrangem e impactam quem os leem pela veemência do preconceito exposto na escola e entre as crianças. Mais tarde, a pesquisa à qual a matéria se referia deu origem ao livro Do silêncio do lar ao silêncio escolar (CAVALLEIRO, 2017) e, é dele, o fragmento, abaixo, sintetizando essa experiência-aula brevemente retratada:

           

“Em outra situação, questiono a menina Vera (negra): ‘Como você é?’. Ela responde: ‘Eu tenho uma franjinha abaixada, sou gordinha, meu pezinho é gordo porque eu puxei meu pai’. Pergunto: ‘Como você é: preta, branca...?’. Rapidamente afirma: ‘Morena’. Digo então: ‘Você gostaria de ser diferente?’. E ela confirma o que já se poderia imaginar: ‘Hum... eu gostaria de ser branquinha!’ [...]” (CAVALLEIRO, 2017, p. 65, grifos da autora).

 

O percurso dessa experiência-aula, entre outras coisas, revela a dívida que a Educação Básica brasileira vem acumulando em relação à população negra, visto que, durante muito tempo, determinou-se a aplicação de um currículo único, sob o pretexto de oferecer uma educação “igual” para todos, ignorando os estudantes afrodescendentes e indígenas, quer vivessem em comunidades rurais ou em grandes centros urbanos. Com isto, as características singulares de cada grupo ficaram excluídas ou ocultas durante décadas, resultando na aversão do negro à sua cor/raça e ancestralidade. Revelando que, de modo geral, quando os negros chegam e permanecem nos bancos escolares, aprendem uma história brasileira forjada, em que os heróis, ou melhor, os principais personagens, são marcadamente brancos-europeus.

 

Como uma criança preta ou morena-mestiça se enxergará nesse quadro? Certamente, não é fácil estudar em uma escola que, por incultura ou segregação consciente, ignora a descendência africana e se desinteressa pelo estudo da África, demonstrando descaso por sua historiografia e persistindo na legitimação da relação tensa, devido às diferenças na cor da pele e traços fisionômicos que estão atrelados à raiz cultural plantada na ancestralidade africana. Assim, a escola é impelida a assumir outra proposta, haja vista que já não é possível caminhar na contramão da história, restringindo-se ao aspecto de uma educação mancomunada com os mecanismos de padronização e homogeneização.

 

Arrematando

 

A identidade e a diferença aproximam-se da representação que, entendida enquanto processo cultural, constrói lugares nos quais os indivíduos se posicionarão e de onde eles poderão falar (HALL, 2014; SILVA, 2014; WOODWARD, 2014). Ou seja, Cozza e Amanda, por serem exemplos da hibridização, miscigenação, sincretismo e do travestismo, logo, concepções que traduzem um tipo de movimentação, deslocamento através das diferentes “jurisdições” identitárias (SILVA, 2014), tiveram a ênfase cambiada da identidade para a representação e, consequentemente, para o cuidado com a identificação (WOODWARD, 2014), isto porque se confundiu a “[...] insolubilidade dos grupos que se reúnem sob as diferentes identidades nacionais, raciais ou étnicas [... afinal,] não é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas.” (SILVA, 2014, p. 87).

 

Por isso, como destaca Fernandes (2017), no interior da população preta e morena-mestiça não existe uma proporção monolítica. Constituir uma espécie de unidade é, para o mencionado autor, uma ocupação inicialmente do político, dado que “[...] trata-se de levar o [moreno-mestiço] a se identificar não com o branco [...], mas levá-lo a aceitar a sua condição de negro e fazer com que sejam negros todos os que possuam caracteres de origem.” (FERNANDES, 2017, p. 93). Tal advertência coaduna com o acontecido no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), feita em 1976, quando, em resposta à pergunta “qual a sua cor de pele?”, a população brasileira da época deu forma a uma lista com 136 diferentes tons de pele, tendo como exemplo: “morena-jambo”, “café com leite”, “quase negra”, “mestiça”, “queimada do sol” e “puxa para branco” (FOLHA DE S. PAULO, 1995).

 

Essa quantidade significativa de definições cromáticas da pele seria consequência da ideologia do branqueamento, isto é, o processo que pressupõe a herança da raça branca como “superior” e capaz de sobrepor-se à herança das consideradas “raças inferiores”, ocasionando, de acordo com Fernandes (2017), diversos problemas psicológicos relacionados ao moreno-mestiço que desenvolvera pânico após a descoberta de não possuir a situação racial que pensava ter; conflitos violentos no interior da família devido às diferenças de cor do pai, mãe e filhos, particularmente, o filho mais escuro que recebia a rejeição, enquanto o mais claro recebia maior identificação.

 

Finalmente, ressalto que o breve relato de experiência (dos autorretratos) sinaliza a necessidade de uma política de formação docente para a diversidade, contemplando a perspectiva das identidades negras. Posto isto, proponho a replicação da atividade-aula em outras turmas, articulando-a com o livro infanto-juvenil Quem é esse nego?!, do autor Toni de Souza. Na obra o autor (negro-mestiço) trata da sua negritude consciente refletindo sobre os ideários de submissão dos povos negros e a contribuição da escola para o processo de ocultação da negritude pela estereotipação e subordinação a um inconsciente recalcado e inferiorizado diante do “outro”, alcançada pela capciosa ideologia do branqueamento que destitui a identidade negra (SOUZA, 2016).

 

Referências biográficas

 

Antonio José de Souza é Teólogo/Historiador. Doutorando do Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea (UCSal). Mestre em Educação e Diversidade (UNEB). Professor da Educação Básica do município de Itiúba (BA). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). E-mail:  tonnysouza@gmail.com

 

Referências bibliográficas

 

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

 

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2017.

 

D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos (sic) no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

 

FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, 2017.

 

FOLHA DE S. PAULO. Veja a definição de cor do brasileiro. Folha de São Paulo Digital, São Paulo, 25/06/1995. Seção Caderno Especial. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/25/caderno_especial/16.html.

 

FOSTER, Eugenia da Luz Silva. Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola. Curitiba: Appris, 2015.

 

HALL, Stuart. Quem precisa da Identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 103-133.

 

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-PENESB. Rio de Janeiro, 2003. Anais[...]. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf.

 

REVISTA NOVA ESCOLA.  Ele vai começar a gritar! Ano XIV, n. 120, março de 1999.

 

SANSONE, Livio. Pai preto, filho negro: cor e diferença de geração. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 25, p. 73-93, 1993. Disponível em: http://books.scielo.org.

 

SCHUCMAN, Lia Vainer. Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor. Salvador: EDUFBA, 2018.

 

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

 

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 73-102.

 

SOUZA, Antonio José de. Ser ou não ser negro, eis a questão! Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 10, n. 26, p. 220-233, out. 2018. Disponível em: http://www.abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/647.

 

SOUZA, Toni de. Quem é esse Nego?! São Paulo: Scortecci Editora, 2016.

 

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 7-72.

10 comentários:

  1. Boa noite, Prezado Antonio José.

    Gostaria de parabenizá-lo, por sua perspicácia criativa.

    A aula relatada, me fez rememorar as minhas vivências na infância, período em que convivi com a ausência desse debate.
    Sou professora, em escola do campo/roça, lugar povoado por população majoritariamente negra. Por isso lhe pergunto: Você concorda que os cursos de formações de tem se negligenciado o debate sobre as identidades raciais de professores e estudantes? E que a própria BNCC não tem dendê em sua base?

    Ana Maria Anunciação da Silva.

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    1. Olá, Ana Maria!
      Obrigado pela participação.

      Sim, a sua percepção faz todo sentido, porque falta ‘azeite de dendê’ tanto nos programas de formação para docentes (inicial e, principalmente, continuada), quanto na BNCC. Hoje a consciência da escola endereçada à diversidade é demasiadamente forte, bem como o cenário educativo formado por singularidades de corpos e existências em movimentos, atravessamentos e cruzamentos tão complexos quanto tensos e conflitantes. Essa nova compreensão, permite escapar do anacronismo característico das condutas educativas irrefletidas e/ou congênitas que alijavam, perpetrando perversidades em nome da tal normalização. Por isso, é preciso ver a escola não apenas ‘realizando coisas’, mas, principalmente, ‘realizando coisas às pessoas’ no nível pessoal e coletivo. Por isso, minha sugestão é que as formações docentes e a própria BNCC tenham espaço para as histórias de vida das pessoas pretas, negras e mestiças; como o meu texto tangencia.

      Abraço!

      Antonio José de Souza
      (Itiúba-Bahia)

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  2. Olá, Toni de Souza.
    Antes de qualquer coisa, meus parabéns pelo seu ótimo texto.

    Como homem negro não retinto, percebo que a necessidade do debate sobre raça está cada vez mais necessária. E pegando um gancho da sua atividade de autorretrato com os estudantes, tenho a seguinte dúvida; quais os mecanismos que você utiliza em sala de aula para reconstruir com os estudantes uma real valorização das culturas brasileiras de origens africanas e indígenas e consequentemente a aquisição do orgulho de poder ter tais traços genéticos?


    Abraço!

    Flavio de Souza - UERJ - Rio de Janeiro

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  3. Olá, Flavio de Souza!
    Muito obrigado por sua participação.

    Eu nunca sei se realmente o objetivo de provocar uma consciência 'de si' negro ou indígena é alcançada. Mas, reconheço a importância de construir um currículo que oportunize tal consciência, isto é, algo mais que uma reflexão crítica; refiro-me à relação com os 'outros' e consigo mesmo - a consciência que é subjetividade. Nesse sentido, gosto da proposta da autoetnografia, da “viagem” para dentro ‘de si’ a fim de procurar vestígios dessas identidades, culturas e subjetividades na própria história de vida (quer dizer, um ‘outro’ que também é você).

    Abraço!

    Antonio José de Souza
    (Itiúba-Bahia)

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  4. Oi,Toni!
    Artigo maravilhoso para ler e passar adiante, sobretudo numa roda de conversa, coisa que está ficando rara neste nosso Brasil antidemocrático! O que acha da BNCC no tocante a esta abordagem? Porque até agora, só enxergo códigos e mais códios. Uma supressão explícita de certos temas históricos e,com relação a questão racial, nem se fala.Assim, noto uma certa perda de momentos reflexvios acerca do assunto identidade negra. A preocupação é fechar o ano com os objetos do conhecimto todos trabalhados! Não é? Parabéns pelo texto realista!!

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    1. Olá, Ivanize!
      Muito obrigado por sua participação, querida amiga.

      Total razão pelas constatações, por isso acompanho você. A BNCC é um documento esvaziado do contexto e, nesse sentido, perigoso, porque deixa o docente desavisado com a ideia do conteúdo “melhor” (pois, é citado nas orientações do documento normativo) e o conteúdo ou temática “pior” (pois, é ausentado). Por outro lado, a falta de qualidade e as supressões em discussões importantíssimas (como é o caso das questões étnico-raciais), são sintomas de como a sociedade brasileira é preconceituosa e racista e como estamos vivendo um período distópico e despótico.

      Abraços, Nize!

      Antonio José de Souza
      (Itiúba-Bahia)

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  5. Olá, Antônio! Parabéns pelo trabalho! Adorei a atividade proposta aos alunos! Ela é reveladora de uma triste realidade que nos rodeia... Penso que esse é um tema que deve ser trabalhado desde a mais tenra idade, sendo profundamente debatida desde o ensino infantil. Como a atividade é muito criativa e interessante gostaria de lhe perguntar quais outras tarefas você se utiliza em sala de aula para que os alunos tenham essa consciência de si e do seu próprio corpo.

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    1. Olá, Andressa!
      Muito obrigado por sua participação.

      Concordo com você, trata-se de um temário que deve ser trabalhando desde a tenra idade. Inclusive o livro ‘Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais’ (2006), oferece um capítulo específico para a Educação Infantil. Sobre as outras atividades, eu gosto de trabalhar a partir de um dado da realidade (notícias, editoriais, documentários, autobiografias, etc), mas gosto, também, de usar livros paradidáticos como “veículos” para um assunto curricular. Por exemplo: Becos da Memória, de Conceição Evaristo (2017) para falar de gênero, memória...; Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus (2007) para falar de políticas públicas, desigualdade social...; O olho mais azul, de Toni Morrison (2003) para falar de identidades raciais rechaçadas, da ideologia do embranquecimento... e O avesso da pele, de Jeferson Tenório (2020) para falar de educação, tomada de consciência, violência policial... E muito mais, afinal, são obras potentes.

      Abraço!

      Antonio José de Souza
      (Itiúba-Bahia)

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  6. Excelente artigo!

    De forma breve, gostaria de saber qual foi o prosseguimento da atividade de auto retrato? No caso o objetivo geral da atividade foi alcançado? Os específicos? Houve surpresa por parte dos alunos na sua reflexão pós atividade ?

    E mais uma vez parabéns pelo texto!!!

    Victor Lima Corrêa

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  7. Olá, Victor!
    Muito obrigado por sua participação.

    Eu entendi, você quer saber dos bastidores da atividade.
    Olha, essa atividade tem um bom tempo. Eu a resgatei esse ano, porque ela marcou o início do meu interesse pelos estudos das questões étnico-raciais e para comemorar a maioridade da Lei 10.639. Eu lembro que foi a primeira atividade de uma sequência didática. Então, eu comecei com os i) autorretratos, ii) o filme ‘Vista a minha pele’ (tem no Youtube), iii) análise de matérias sobre famosos que sofreram discriminação racial e iv) a roda de conversa para refletir os autorretratos à luz de todo o material: filme e as matérias jornalísticas. Na roda de conversa eu tive muito cuidado no meu discurso, pois não queria parecer um ‘inquisidor’. Queria provocar a consciência de um sujeito particular que singulariza o social, ou seja, os alunos, também, foram respingados por esse preconceito que é estrutural, mas, que podem, pela consciência ‘de si’ e do ‘ser-para-o-outro’, escolher-se no mundo com identidades afirmativas.

    Abraço!

    Antonio José de Souza
    (Itiúba-Bahia)

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