Janaina Rodrigues Pitas

A LITERATURA COMO FONTE HISTÓRICA: R-EXISTÊNCIA DE MULHERES NEGRAS NA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA DE AUTORIA FEMININA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA 

 

Esse estudo busca um outro olhar, cuidadoso, para a literatura afro-brasileira de autoria feminina que por muitas vezes é subalternizada ou silenciada na nossa sociedade, assim como repensar de que modo as escrevivências (conceito criado por Conceição Evaristo para mostrar ao leitor vivências - particular ou coletiva - e a condição das mulheres negras no Brasil) podem contribuir como fonte histórica no Ensino da História Africana e Afro-brasileira, especialmente na compreensão de categorias e conceitos históricos que possibilitam a valorização da Cultura e História Afro-brasileira e Africana, a luta antirracista.

 

Kilomba (2019) em seu livro “Memórias de plantação” discorre como a escrita, a autoria, nessa obra, emerge como resistência, ato político, a importância de tornar-se autora e autoridade da própria história, a oposição ao projeto colonial, o desejo de oposição e reinvenção:

 

“Não se pode simplesmente se opor ao racismo, já que no espaço vazio, após alguém ter se oposto e resistido, “ainda há a necessidade de torna-se – de fazer-se (de) novo. (hooks, 1990, p.15). Em outras palavras, ainda há a necessidade de tornar-mo-nos sujeitos” (KILOMBA, 2019, p. 28-29)

 

Pensando nessa abordagem de oposição, reivenção e R-esistência proponho o estudo de obras afro-brasileiras de autoria feminina como fonte histórica para o Ensino de História, em que escolhi as seguintes escritoras: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Jarid Arraes. O conceito de literatura afro-brasileira propõe que se produza escritas de autoria negra que evidenciem as/os personagens negros e negras, que estes/as sejam narrados como sujeitos e protagonistas nas obras literárias, que promovam a valorização da história e cultura africana e afro-brasileira.

 

Durante diálogos formativos para relações étnico-raciais no ano de 2017 iniciei algumas análises sobre as potencialidades e questões historiográficas presentes na literatura afro-brasileira de autoria feminina como importante aliada no Ensino de história africana e afro-brasileira, que perpassam a abordagem teórico-metodológica da Educação Histórica, um terreno fértil para estudarmos o pensamento histórico de alunos e professores, na interpretação e usos de fontes históricas. A literatura afro-brasileira de autoria feminina sob o prisma de categorias e conceitos históricos, como: memória, identidade, racismo, entre outros.

 

No entanto, nesse percurso formativo foram constatados a tímida visibilidade/acesso das obras e autoras da literatura afro-brasileira de autoria feminina, uma epistemologia subalternizada, prevalecendo uma história única, algo que já foi criticado pela escritora nigeriana Chimamanda, no livro O perigo de uma história única ela alerta:

 

“Eu amava aqueles livros americanos e britânicos que lia. Eles despertaram minha imaginação. Abriram mundos novos para mim, mas a consequência não prevista foi que eu não sabia que pessoas iguais a mim podiam existir na literatura. O que a descoberta de escritores africanos fez por mim foi isto: salvou-me de ter uma história única sobre o que são os livros” (ADICHIE, 2019, p. 14)

 

Nesse sentido, Lima no capítulo Personagens negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil questiona sobre a representação da população negra de forma estereotipada em obras da literatura canônica brasileira:

 

“O modelo representado interfere na realidade, limita percepções, retifica dominações?” (LIMA, 2015, p. 102)

 

Provocações necessárias para repensarmos o Ensino de História por meio da literatura afro-brasileira de autoria feminina, por meio de fontes históricas, produtos culturais com ecos temporais.

 

História e literatura

 

A partir dos debates produzidos pela História Cultural, na segunda metade do século XX, as narrativas literárias passaram a figurar como fonte para a historiografia, o diálogo entre História e Literatura adentrou alguns estudos no ensino de história, incluindo a possibilidade do uso de fontes literárias em sala de aula. Alguns historiadores, há algum tempo, utilizam das obras literárias como fonte para a construção do conhecimento histórico, para Sandra Pesavento (2006), dentre os desafios do uso da literatura no Ensino de História está a superação da leitura de forma anacrônica e meramente ilustrativa. Bittencourt (2018) salienta que o enlace entre a História e a Literatura favorece o gosto pela leitura e a aprendizagem dos conhecimentos históricos.

 

Pesavento alerta que a literatura apresenta um discurso privilegiado que acessa o imaginário das diferentes épocas, traços, indícios, marcas de historicidade, fonte para algo que aconteceu, o historiador tem tarefas específicas a cumprir, pois:

 

“[...] ele reúne os dados, seleciona, estabelece conexões e cruzamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta soluções para decifrar a intriga montada e se vale das estratégias de retórica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma versão o mais possível aproximada do real acontecido. O historiador não cria personagens nem fatos. No máximo, os “descobre”, fazendo-os sair da sua invisibilidade. A título de exemplo, temos o caso do negro, recuperado como ator e agente da história desde algumas décadas, embora sempre tenha estado presente. Apenas não era visto ou considerado, tal como as mulheres ou outras tantas ditas “minorias” (PESAVENTO, 2006, sem paginação)

 

Nesse processo de análise sobre as fontes literárias no Ensino de História é importante questionarmos sobre a autoria, o público, o destino das obras, especificando o momento histórico em elas foram criadas e a importância das obras nos dias atuais, pois todos esses elementos repercutem na recepção e na significação do olhar analítico sobre as mesmas.

 

Literatura Afro-brasileira

Constatei que o interesse pela literatura afro-brasileira de autoria feminina ampliou-se a partir das lutas e resistências encabeçadas, em especial, por ativistas que representavam o Movimento Negro Unificado (MNU), no final da década de 1970, e que a produção na perspectiva afro-brasileira tornou-se uma aliada na construção de uma identidade negra, pois traz representatividade, conscientização sobre o “ser negro”, numa sociedade que não valoriza a produção literária escrita por autoras/es negras/os, pois o mercado editorial ainda é em sua maioria masculino e branco.


Em consonância com esses desafios, de epistemologia subalternizada, especialmente da “produção do conhecimento feita pelo negro”, a partir da Lei 10.639/03 e 11.645/08 temos a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira no âmbito escolar, a qual propõe a conscientização sobre origens, tradições africanas e a afirmação cultural. Neste contexto, encontramos contribuições das escritoras afro-brasileiras, as quais lutam pela visibilidade da herança africana, pelo protagonismo da mulher negra na literatura e na sociedade.

 

Escritoras negras contemporâneas como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Jarid Arraes (1960-2017), nos ajudam a repensar, a partir de um outro ponto de vista, o de mulheres negras, as marcas da colonialidade, combatendo visões eurocentradas, abrindo espaço para outras vozes e outras histórias no Ensino de História através da literatura afro-brasileira de autoria feminina, enquanto fontes históricas.

 

Por conseguinte, destaco o Ensino da História e cultura afro-brasileira para uma atitude compromissada e emancipatória, em que a pessoa negra também seja protagonista, herói/heroína, mas, em especial, que sejam vistos com representatividade em suas narrativas literárias, a sua materialidade histórica, questões sobre o que faz na vida de quem lê.

Somada a essa caracterização é preciso a “prática do cuidado” sobre a trajetória da população negra na literatura brasileira, que por inúmeras vezes foi apresentada nos textos literários de forma estereotipada, e neste sentido, a literatura afro-brasileira de autoria feminina, na perspectiva da valorização, traz um diferencial, a experiência negra feminina e a afirmação cultural:

 

“A presença do negro na literatura brasileira não escapa ao tratamento marginalizador que, desde as instâncias fundadoras, marca a etnia no processo de construção da nossa sociedade. Evidenciam-se, na sua trajetória no discurso literário nacional, dois posicionamentos: a condição negra como objeto, numa visão distanciada, e o negro como sujeito, numa atitude compromissada. Tem-se, desse modo, literatura sobre o negro, de um lado, e literatura do negro, de outro” (PROENCA FILHO, 2004, p.161)

Nessa perspectiva, analiso a literatura afro-brasileira de autoria feminina como fonte histórica no Ensino de História, evidenciando a autoria, a oposição colonial e a R-esistência na História.

 

Autoria feminina

 

As escritoras afro-brasileiras e as obras literárias que contribuirão para a análise de fontes histórias são: Carolina Maria de Jesus - Quarto de Despejo: diário de uma favelada (2014); Conceição Evaristo – Poemas da recordação e outros movimentos (2008); e Jarid Arraes - Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (2017).

 

No intuito de evidenciar a importância das escritoras e obras selecionadas, apresentaremos as mesmas, pois consideramos que esse seja um ponto importante para ser descrito e analisado, por entender que a obra literária e a biografia se relacionam profundamente, pois abarcam enraizamento histórico, experiências dos sujeitos e suas percepções de mundo, ou seja, não desejo objetificar as autoras e sim evidenciar as suas vivências.

 

Carolina para além do Quarto de Despejo

 

Carolina Maria de Jesus, escritora negra, nascida em 14 de março de 1914 em Sacramento, Minas Gerais, em uma comunidade rural, a família era analfabeta, a mãe nasceu sobre a lei do ventre livre e o avô materno foi escravizado. Teve uma dura infância, aos sete anos frequentou a escola, onde pode ficar apenas dois anos, mas lá aprendeu a ler e escrever e desenvolveu um encantamento pela leitura e escrita.

 

Após a morte da mãe em 1937 mudou-se para São Paulo, as margens do rio Tietê, na capital paulista. Mãe de dois meninos e uma menina enquanto catadora de papel lia e escrevia nas horas vagas, era o seu refúgio, registrava o dia-a-dia na favela nos papéis que recolhia pelas ruas. Tais registros de suas vivências (o sonho de ser tornar escritora) deram origem a seu primeiro livro, “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada”, obra que virou best-seller em 1960, sendo vendido em 40 países e traduzida para 16 idiomas, uma obra de gênero autobiográfica que nos possibilita pensar uma escrita marcada por memórias e por isso foi escolhida para compor parte dessa pesquisa.

 

Na atualidade suas obras são pesquisadas por diversos campos de conhecimento nas Universidades. A obra Quarto de despejo e sua biografia tem ocupado a lista dos livros mais vendidos em grandes editoras, no ano de 2020 a editora Companhia das letras lançou um projeto em que irá publicar uma coletânea de obras inéditas da autora, para além do Quarto de despejo, sob a coordenação da Vera Eunice (filha de Carolina), Conceição Evaristo e outras referências no campo da literatura. Carolina utilizava a expressão quarto de despejo como metáfora para dizer que a favela era aquilo que a cidade desejava se livrar/esconder/excluir e o centro dela seria a sala de estar.

 

A partir das suas leituras, jornais e revistas, a autora tecia suas críticas, denúncias e posicionamento político. Uma obra autobiográfica, que traz em sua narrativa: ecos temporais, a discriminação social, questões raciais, de gênero, sobretudo memórias de R-existência:

 

25 de julho…Achei o dia bonito e alegre. Fui catando papel” (JESUS, 2014, p. 100)

 

Conceição Evaristo: “vivências de sujeitas negras”

 

Conceição Evaristo, nasceu em Belo Horizonte, em 1946, de origem humilde, filha de lavadeira, começou a trabalhar aos 8 anos como doméstica, desde a infância se dizia ladeada palavras e influenciada por Carolina Maria de Jesus. Quando jovem migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970, onde graduou-se em letras, trabalhou como professora na rede pública de ensino.

 

Posteriormente defendeu seu mestrado em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996), e defendeu o doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos (2011), em que pesquisou as obras poéticas dos afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira em confronto com a do angolano Agostinho Neto. Militante do movimento negro, a autora é participativa na valorização da cultura negra no Brasil, iniciou suas publicações literárias em 1990, na série Cadernos negros. A partir das escrevivências (escrita a partir da sua experiência como mulher negra na sociedade brasileira) publicou romances, contos, poesias e vem ganhando inúmeros leitores no Brasil, França, Alemanha, Inglaterra e outros países.

 

Algumas obras de Conceição Evaristo foram disponibilizadas pelo PNLD em 2018 para o Ensino Médio.  Em 2016, publicou o livro de contos, “Histórias de leves enganos e parecenças”, narrativas para pensarmos sobre o racismo, gênero e religiosidade de matriz africana. Recebeu em 2015 o Prêmio Jabuti pela obra Olhos d´água e em 2019 foi homenageada como personalidade do ano pelo Prêmio Jabuti.

Guimaraes-Silva; Pilar (2019) apresentam no texto “A voz que incomoda a Casa Grande” a importância da escrita de Conceição Evaristo:

 

“(…) a escrevivência é a chave de leitura da vida social e, vamos além, é um método de escrita e pesquisa sensível” (GUIMARÃES-SILVA; PILAR, 2019, p. 37).

 

Nesse sentido nas obras de Conceição Evaristo há o encontro de sujeitas que se autodefinem, autovalorizam, destaco as enunciações das sujeitas.

 

Jarid Arraes, cordéis para homenagear mulheres negras

 

Para compor uma terceira geração de escritoras negras brasileiras considero importante também analisar uma obra de Jarid Arraes, que nasceu em 1991, em Juazeiro do Norte – Ceará. A escritora é filha e neta de cordelistas e tem mais de 70 títulos publicados em literatura de cordel. Sua primeira leitura e influência na literatura afro-brasileira foi Conceição Evaristo e assim como ela traz em suas narrativas o protagonismo da mulher negra e em 2020 foi indicada para o prêmio Jabuti.

 

Para essa pesquisa foi selecionado o livro “Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis” (2017). Nessa obra a jovem escritora traz em cordéis a biografia de mulheres negras, como: Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luisa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata, Zacimba Gaba.

 

A obra traz narrativas que valorizam a histórias de mulheres negras, que foram silenciadas nos livros de História, mas na referida obra passam a protagonizar grande importância na História do Brasil e no ensino de História.

 

A literatura afro-brasileira de autoria feminina como fonte histórica

 

Entre as fontes da literatura afro-brasileira, para reconhecimento e análise dessa arte literária, busquei algumas possibilidades nas categorias (temporalidade, memória, identidade, mudança e permanência) e conceitos históricos, (Racismo, Ancestralidade, Resistência negra, etc) os quais possibilitam estabelecer relações entre o passado, presente e futuro, pois trazem eco temporal, que abarcam o aprendizado histórico.

 

Alberti (2012) problematiza por meio das seguintes questões:

 

“O que é a fonte e onde se encontra?, Como chegou até nós. Em que contexto foi produzida?. Que outras fontes nos ajudam a entendê-la?. Os alunos também podem participar dessa contextualização, ao refletirem sobre o que elas documentam e sobre as intenções de sua produção e de sua preservação” (ALBERTI, 2012, p. 66)

Fernandes (2008), no artigo “A reconstrução de aulas de História na perspectiva da Educação Histórica: da aula oficina à unidade temática investigativa”, fundamentado em Barca (2004) e Schmidt e Braga (2005/ 2006), aborda a importância dos seguintes aspectos para Ensino de História:

 

-Definição de temática investigativa;

 

-Realizar a categorização dos conhecimentos prévios dos alunos;

 

-Ambiente de investigação com uso de documentos históricos;

 

-Intervenção pedagógica do professor;

 

-Produção de experiências orientada em sala de aula;

 

-Avaliação qualitativa.

 

No intuito de utilizar as fontes literárias no Ensino de História surgem algumas possibilidades de intervenções pedagógicas, baseada nessa perspectiva de temática investigativa no campo da Educação Histórica proponho um breve exercício para uso de fonte histórica da literatura afro-brasileira de autoria feminina no ensino de História em sala de aula:

 

1 ° Definir Unidade temática investigativa: O racismo nos dias atuais.

 

2º Apresentar aos alunos os objetivos de ensino.

 

3º Identificar os conhecimentos prévios dos alunos (roda de conversa) por meio de questões problematizadoras:

 

Objetivos de ensino

Perguntas para a investigação dos conhecimentos prévios

Identificar os movimentos de resistência da população negra no Brasil frente a racismo estrutural.

Quais foram as lutas, manifestações da população negra no Brasil?

Avalie as conquistas e dificuldade de pessoas negras na sociedade brasileira

As pessoas negras sempre tiveram os mesmos direitos que as pessoas brancas? Explique.

 

Refletir sobre a situação atual da população negra e possíveis soluções às políticas públicas.

Em sua opinião, o que precisa ser feito em relação às leis e políticas públicas?

 

 

3° Levar a biografia de escritoras afro-brasileiras e contextualizar as vivências das mesmas.

 

4º Propor a leitura fragmentos (poema, contos, cordéis e diário) do livro de Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Jarid Arraes em pequenos grupos. Segue algumas sugestões:

 

Poema Vozes-mulheres de Conceição Evaristo, no livro Recordações de poemas (2008), o poema Vozes-Mulheres, sensibiliza para pensarmos vivências de mulheres negras em diferentes tempos, as dores, as lutas e R-esistência:

 

Fonte 1

 

“A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio.
Ecoou lamentos de uma infância perdida.

A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue         e         fome.

A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade”
(EVARISTO, 2008, p. 10-11).

 

Cordel para Tereza de Benguela de Jarid Arraes, Heroínas negras brasileiras:

 

Fonte 2

 

“Na história do Brasil Nas escolas ensinada Aprendemos a mentira Que nos é sempre contada Sobre negros e indígenas  Sobre a gente escravizada. Nos contaram que escravos. Não lutavam nem tentavam Conquistar a liberdade Que eles tanto almejavam E por isso só passivos Os escravos se encontravam. A mentira propagada Me dá nojo de pensar Pois era do povo negro A força para enfrentar Com imensa inteligência Planejar e conquistar. Um exemplo muito grande É Tereza de Benguela A rainha de um quilombo Que mantinha uma querela Contra o branco opressor Sem aceite de tutela. No estado Mato Grosso Havia o Quariterê Um quilombo importante. Para livre se viver. Cooperando em coletivo Guerreando pra vencer. Zé Piolho, seu marido Acabou por falecer E Tereza de Benguela Veio, pois rainha a ser Liderando com firmeza Na certeza de crescer. No quilombo liderado Era possível encontrar Estrutura de política Que seria de invejar E a administração Também era exemplar. Tinha armas poderosas Pra lutar e resistir Com talento pra forjar Se botavam a fundir Objetos muito úteis Para a vida construir. As algemas e outros ferros Que serviam de prisão Lá na forja transformavam Pra outra utilização Não serviam de tortura Mas para a libertação. O quilombo tinha armas Pela troca ou por resgate E com muita resistência Suportavam esse embate Libertando muita gente Pela via do combate. O sistema muito rico Tinha até um parlamento E também um conselheiro Pra rainha embasamento Que exemplo grandioso Era o gerenciamento! Além disso, ainda tinha O plantio de algodão E também lá se tecia. Pra comercialização Os tecidos que vendiam Fora da quilombação. As comidas do quilombo Que ali eram plantadas Dividas entre todos Também comercializadas Tudo aquilo que sobrava Para venda enviadas. Tinha milho e macaxeira E também tinha feijão Sem esquecer a banana Com fins de alimentação E as sobras, como disse Pra comercialização. Foi por isso que Tereza Duas décadas reinou Com a força do quilombo Que com garra liderou E por isso pra história A rainha então ficou. Em mil setecentos e setenta Quariterê foi atacado Por Luís Pinto de Souza o Coutinho era enviado Pelo sistema escravista O quilombo era acabado. A população de negros Setenta e nove se contavam E a população indígena Tinham trinta que restavam Foram presos, foram mortos Pelos que assassinavam. De acordo com o registro Tereza foi capturada Mas depois de poucos dias A rainha adoentada Terminou-se falecendo Da mazela ali tomada. E os brancos matadores A cabeça lhe cortaram Exibindo em alto poste Pra mostrar aos que ficaram A maldade desses vermes Que do racismo enricaram. Dia vinte cinco de Julho É o dia de lembrar De Tereza de Benguela Que heroína a reinar Foi durante sua vida Sem jamais silenciar. Que exemplo inspirador Que mulher tão imponente Foi Tereza de Benguela Uma deusa para a gente Que até hoje não desiste Dessa luta pertinente. É por isso que escrevo Mulher negra também sou E registro de Tereza O legado que ficou Pois bem poderosamente A Tereza aqui passou. Que seus feitos importantes Não mais sejam esquecidos Que o racismo asqueroso Não lhes deixe escondidos Pois são para o povo negro Exemplos fortalecidos.

Oh Tereza de Benguela! Nosso espelho ancestral Sua alma ainda vive E entre nós é maioral Nós honramos sua luta Sua força atemporal! ” (ARRAES, 2020, p. 137-142)

 

Livro Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus (2014):

 

Fonte 3

 

“13 de maio Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. ...Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. [....] Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. ...Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:     – Viva a mamãe!     A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o habito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim:     – “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.” ...Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 2015, p.30)

 

5º Realizar provocações sobre as semelhanças e divergências entre as fontes históricas e o contexto atual.

 

6 º Propor análise cronológica entre as narrativas, observando as relações com o passado e presente (mudanças e permanências).

 

7º Levar para sala de aula fontes fotográficas e registros de jornais (baseado na temática “racismo nos dia atuais”) para o exercício de multiperspectividade (diferentes pontos de vista) entre as diferentes fontes históricas, e análise das narrativas literárias afro-brasileira de autoria feminina.

 

8º Questionar aos alunos, em uma roda de conversa, o que foi marcante, significativo ou incômodo e propor aos alunos produções de narrativas (histórias em quadrinhos, charges, músicas, desenhos, contos, poemas, etc.) com base na temática “O racismo nos dias atuais”.

 

9°Propor que os alunos escrevam um carta para Carolina Maria de Jesus ou para Conceição Evaristo relatando algumas percepções sobre o “racismo nos dias atuais”. Narrativas que a professora/o poderá categorizar/avaliar qual é a compreensão dos alunos acerca da temática trabalhada no viés da temática investigativa. Para Barca (2004) é a chamada investigação da meta cognição.

 

10º Avaliar se houve aprendizagem histórica (avanços e desafios), registrar e divulgar essa experiência em canais educativos, eventos acadêmicos e/ou no portal da Secretaria de Educação.


Considerações

 

Essa proposição de “Temática investigativa” com literatura afro-brasileira de autoria feminina como fonte histórica para o Ensino de História, em fase de elaboração, será avaliada numa proposta colaborativa com professores de História no Ensino Médio da rede Estadual de Mato Grosso, considerando a sua aplicabilidade em sala de aula, após o retorno das aulas presenciais com fins para minha pesquisa de doutorado em História na UFMT.

 

A priorização das obras literárias afro-brasileira de autoria feminina com fundamentação teórica-metodológica da Educação Histórica no Ensino de História almeja subverter o pensamento hegemônico que situa a população negra e a sua cultura num lugar predeterminado, alicerçado sob as bases do estereótipo e racismo vigente.

 

Proponho que a literatura afro-brasileira de autoria feminina seja analisada como potente fonte histórica, enfatizando a R-existência de mulheres negras através das escrevivências, acionando categorias e conceitos históricos para as aprendizagens históricas, a partir de outras experiências (oposição e reinvenção), para a valorização da cultura e história afro-brasileira e africana.

 

Referências biográficas

 

Doutoranda Janaina Rodrigues Pitas, professora da Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso.

 

Janaina Rodrigues Pitas, estudante de doutorado em história pela Universidade Federal de Mato Grosso.

 

Referências bibliográficas

 

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1. Ed. – São Paulo. Companhia das Letras, 2019.

 

ALBERTI, Verena. Proposta de material didático para a História das relações étnico-raciais. Revista História Hoje, v. 1, nº 1, p. 61-88 – 2012. https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/19/23

 

ARRAES. JaridHeroínas negras brasileiras em 15 cordéisSão Paulo: Seguinte, 2020. 

 

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. [S.l: s.n.], 2018.

 

PROENCA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 18, n. 50, p. 161-193,  Apr.  2004 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100017&lng=en&nrm=iso>. access on  04  Feb.  2021.  https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100017.

 

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

 

FERNANDES. Lindamir Zeglin. A reconstrução de aulas de História na perspectiva da Educação Histórica: da aula oficina à unidade temática investigativa. In: Anais do VIII Encontro Nacional de 1 Pesquisadores de Ensino de História: Metodologias e Novos Horizontes. São Paulo: FEUSP - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2008.

 

JESUS, Carolina. Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10º ed. - São Paulo: Editora Ática, 2014.

 

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação – episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cogobé, 2019.

 

LIMA, Heloísa Pires. Personagens negros: um breve perfil na Literatura Infato-Juvenil - p.101-115. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. [Brasília]: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), 2015

 

PESAVENTO. Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2006, [En línea], Puesto en línea el 28 jan. 2006. URL: http://nuevomundo.revues.org/1560. Acessado em 26/08/19.

 

SILVA, Pâmela Guimarães; PILAR, Olívia. A voz que incomoda a Casa Grande: a escrevivência de Conceição Evaristo e a desobjetificação dos sujeitos pesquisados. In: FREITAS, Viviane Gonçalvez.  Intelectuais negras [recurso eletrônico]: vozes que ressoam. Belo Horizonte, MG: PPGCOM UFMG, 2019, p. 35-55.


19 comentários:

  1. Bom dia, Janaína. Eu adorei a sua comunicação. Eu senti que essa atividade também se trata de um incentivo à leitura. Eu gostaria de saber como que você encara a questão da decolonialidade no seu trabalho, se for possível pensar nisso. Obrigado.

    Carlos Mizael dos Santos Silva

    ResponderExcluir
  2. Bom dia, Carlos.

    Fico feliz que tenha gostado dessa comunicação.

    Sim, minha proposta busca incentivar a leitura e nesse momento estou revisando acervos de fontes históricas no formato digital, sítios digitais que possam colaborar no desenvolvimento das análises das narrativas literárias em diferentes suportes (cartum, vídeos, HQs, audiobooking, etc.), no intuito que estes possam despertar maior interesse em nossas/os alunas/os.

    A questão da decolonialidade no meu trabalho traz questões importantes, entre elas o epistemicídio, debatido por Boaventura de Souza Santos, Nilma Lino Gomes, Sueli Carneiro e outras/os. Nesse sentido entendo a importância de refletirmos:
    Por que não lemos Lélia González, Sueli Carneiro, Maria Beatriz do Nascimento, Conceição Evaristo durante nossa formação? Onde estão as nossas intelectuais negras? (Esse movimento reflexivo ainda é pequeno no Ensino Superior)
    Penso que essa invisibilidade nos nossos currículos formativos diz muito sobre qual conhecimento e cultura é aceito e qual ainda é ignorado.

    Penso que os Movimentos Sociais, especialmente o Movimento Negro Unificado no Brasil resiste as narrativas coloniais. A produção dos Cadernos Negros - Quilomhoje, com contos e poemas afro-brasileiros, faz por mais de 40 anos esse trabalho de promover narrativas contra-hegemônicas para a desconstrução do eurocentrismo.

    Não sei se consegui te responder.

    Obrigada pela questão.

    ResponderExcluir
  3. Conseguiu sim. Valeu.

    Carlos Mizael dos Santos Silva

    ResponderExcluir
  4. Olá Janaina que belo trabalho! Muito importantes suas experiências contadas através do texto. Eu gostei muito da forma como você abordou a questão da literatura feminina negra como resistência e como é de suma importância o engajamento de nós professores em elaborar projetos e produzir aulas tratando da literatura feminina negra. Eu como professora gostei muito porque você construiu sua didática de uma maneira a se conectar com a realidade dos alunos e isso é essencial. Me inspirei no seu trabalho. Eu particularmente gosto muito de usar a literatura, ela aproxima nos aproxima dos alunos e de suas histórias e isso é muito importante para que a história faça sentido na vida deles. Eu queria saber contigo que ações você acredita serem importantes para estimular projetos, aulas e discussões sobre a visibilidade/valorização da mulher negra e das africanidades e cultura afro-brasileira na escola?
    Abraços
    Bruna Rodrigues

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    2. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    3. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    4. Olá, Bruna.
      Obrigada pela leitura, pela partilha das suas impressões e questionamento.

      Boa pergunta.
      Vou partilhar algumas percepções a partir da minha experiência no Estado de Mato Grosso (entendo que as ações dependem muito do contexto da escola/comunidade, formação dos professores e recepção do alunado) que envolvem a cultura escolar e a cultura na escola.

      Nesse diálogo considero importante mapear:
      -Identificação das carências do alunado em relação as categorias de raça e gênero (o que sabem? O que pensam? Quais as experiências?). Penso que esse é um elo importante para que a aprendizagem histórica ganhe sentido para a vida prática do nosso alunado e que a partir desse estudo prévio podemos pensar em ações que possam positivar a história e cultura afro-brasileira e africana.
      - Acessibilidade de fontes históricas alocadas na internet, nos suportes digitais. Penso que esse é um ponto relevante porque é uma forma de democratizarmos o conhecimento, por muitas vezes o acesso de acervo físico é inviável pela distância geográfica e além disso para muitos alunos navegar/interagir na internet parece ser muito mais atrativo.

      Vou utilizar como exemplo a tipologia literatura afro-brasileira de autoria feminina. Hoje podemos encontrar acervos de fontes históricas digitalizados alocadas na web com fotografias das autoras negras, entrevistas em vídeo, cartas, diários, narrativas da vida e obra das escritoras negras em cartuns, audiobooks etc. Temos uma amplitude de fontes históricas de mulheres negras, que mostram suas potencialidades através da autoria dos sujeitos em análise, em formato digital, que podem provocar a construção do conhecimento histórico em diferentes formas de ensinar e aprender, aproximando as aprendizagens as demandas sociais e culturais.

      Não sei se você conhece o Memorial Maria Firmina dos Reis, organizado pela pesquisadora da USP, Luciana Diogo, é um primor, traz biografia, obras, multimídia, revista Firminas etc. Página: https://mariafirmina.org.br

      Não sei se consegui responder.
      Abraço!
      Janaina Rodrigues Pitas

      Excluir
  5. Olá, Janaina!

    Que trabalho lindo! Que trabalho emocionante! Confesso que o título já me chamou a atenção e vim ler tudo. Gostaria de agradecer por sua contribuição e levantamento dessa temática. Gostei muito como na leitura onde você apresenta as autoras estudadas nós podemos perceber que há uma conexão entre as três. Conceição inspirada em Carolina, enquanto Jarid Arraes bebe da fonte de Evaristo. Achei uma relação tão significativa, assim como você trazer uma breve biografia delas relatando informações pessoais além da escrita, como o lugar de onde estas mulheres vieram.

    A sua proposta didática usando literatura como fonte histórica é tão completa. É simples, mas ao mesmo tempo muito engajada em atingir o propósito que é falar sobre como a história dessas mulheres e demais personalidades negras são um caminho para a libertação de todo um povo oprimido e impedido de falar. Com a sua pesquisa nós visualizamos a necessidade de um combate à história única, como bem declara Chimamanda Adichie - uma de suas fontes referenciais.

    Também fiquei bastante curiosa em saber sobre a aplicação desse material pelos professores do ensino médio da rede estadual do estado do Mato Grosso. Certamente será uma rica experiência.

    Fiquei interessa em saber se a escrita das mulheres negras no Brasil já era um tema de trabalho seu há certo tempo e como surgiu a motivação para a construção desse material? Pergunto porque vi que a aplicabilidade da temática na escola será utilizada na sua pesquisa de doutorado, então imagino que já tenha familiaridade com a área. Por fim, estava lendo sua resposta a uma das perguntas dos colegas e você reflete sobre a ausência de intelectuais mulheres nas bibliografias das nossas graduações. Eu, por exemplo, trabalhei com Carolina Maria de Jesus em um texto complementar e ela foi a única dentre os tantos nomes citados por você que me apareceu como fonte. Como você justifica essa falta ainda hoje dentro das graduações, uma vez que o movimento para a inclusão histórica parece ser cada vez maior? O que será que impede os/as docentes de fortalecerem essa busca? Acredito muito que nossa visão sobre as universidades cai num ideal de espaço comunitário e acessível, mas ainda é um ambiente bastante elitista, o que dificulta a inserção de determinados assuntos. Você concorda?

    Att,
    Luna Silva de Carvalho.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    2. Olá, Luna.
      Obrigada pela leitura atenta, por partilhar suas considerações acerca da minha comunicação e pelas questões.

      Fico feliz que você tenha percebido as relações entre as escritoras, elas partilham do conceito de Escrevivências, a escrita de nós, que reflete a condição social/racial/gênero e ao mesmo tempo a luta das mulheres negras no Brasil.

      Trabalhei por 10 anos (2009-2019) como formador de professores em um Centro de Formação Continuada para educadores na rede estadual do Mato Grosso, no município de Primavera do Leste, e no ano de 2014 por conta de algumas demandas, dos resultados da pesquisa do meu mestrado, comecei um grupo de estudos com professores para dialogarmos sobre relações étnico-raciais.

      No ano de 2017 comecei a ler algumas escritoras afro-brasileiras (na literatura, na filosofia, na educação etc.) e visualizei os sentidos históricos nas obras literárias, refleti que até os meus 40 anos de idade não tinha tido acesso as intelectuais negras, isso me inquietou, e por isso comecei a levar essas fontes em encontros formativos no IFMT, depois passei a divulgar as obras de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo nas escolas estaduais, por meio do Sindicado de professores- SINTEP, fui debater com alunos e professores do Ensino Médio e percebi que era um caminho potente na busca pela sensibilização, para as questões raciais, para pensarmos a violência contra mulher, analisar problemas sociais, e sobretudo evidenciar a resistência das mulheres negras.

      A fundamentação metodológica venho (re)construindo agora no doutorado, alicerçada no campo da Educação História, pois penso que é um campo fértil para compreender as aprendizagens de professores de história e do nosso alunado.

      Concordo com você, a universidade ainda é um espaço em boa medida elitista. Tem um artigo da bell hooks, chamado “Intelectuais negras” que problematiza bem essa ausência nas universidades, ela diz que o corpo das mulheres negras ainda é de objetificação sexual e doméstica, e que a intelectualidade/inteligência é negada. Isso também me leva a questionar quantas professoras negras encontramos nas universidades, na reitoria, na presidência do Brasil, penso que isso não é mera coincidência, ao longo da minha formação acadêmica tive apenas duas professoras negras.

      Nossos currículos acadêmicos ainda replicam em boa parte algumas concepções eurocêntricas, mas também começo a ver um pouco de luz no fim do túnel, há uma crescente de pesquisas que começam a provocar ranhuras nessa estrutura perversa e excludente.

      Nessa semana, por exemplo, acompanhei um ciclo de debates on-line da PUC-SP que apresentava a inauguração da Biblioteca de autoria negra e o lançamento de uma coleção de autoria negra - Educ. Fruto da reivindicação de coletivos negros, professores, estudantes etc.

      Penso que estamos no caminho e construindo mudanças.

      Seguimos nessa luta! Avante!

      Espero ter conseguido te responder.

      Abraço!
      Janaina Rodrigues Pitas

      Excluir
  6. Olá! Quanta riqueza em seu trabalho. Importantíssimo dar visibilidade à literatura afro-brasileira escrita por mulheres. Tenho duas questões a respeito do texto. A primeira é: por que trabalhar apenas com autoras? Você chegou a pensar ou trabalhar com autores negros também? Se sim, quais abordagens e que preocupação se precisaria ter? Lendo com atenção as três fontes apresentadas, percebe-se a intenção de denúncia da situação na qual a população negra, principalmente as mulheres vive. É uma descrição com propriedade e que para uso em sala de aula como fonte é fantástica. Principalmente para se trabalhar as questões que envolvem as mulheres negras. Porém, salvo o cordel de Jared Arraes que evidencia a luta dos negros e a importância da rainha Tereza, os outros trazem como cerne a situação social presente no cotidiano brasileiro. Que cuidados você teria para trabalhar esses textos sem estereotipar o negro/negra no Brasil? Jackson Alexsandro Peres

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Jackson.
      Obrigada pela leitura e questões.
      Escolhi na minha pesquisa autoras negras por inquietação, por identificação (me vejo como mulher/negra/intelectual), por perceber na minha experiência formativa (escolar e na formação inicial no Ensino Superior) a invisibilidade desse protagonismo feminino negro, por posicionamento político (a escrita é um ato político) e por reconhecer na nossa historiografia o quanto as mulheres negras sofreram e ainda sofrem inúmeras opressões (racial/gênero/classe). Isso também pode ser analisado nos nossos dados socioeconômicos e tem uma publicação bem relevante no livro “A nova história das mulheres”, capítulo “mulheres negras” da Bebel Nepomuceno, em que a historiadora analisa a trajetória das mulheres negras do pós-abolição aos dias atuais, evidenciando os direitos que lhe foram negados, incluindo a falta de acesso a educação para a maioria delas, mas também discorre as inúmeras lutas das mulheres negras dentro dos coletivos/associações. Uma pesquisa bem importante nesse sentido é a da historiadora Alexandra Lima da Silva que analisou cartas, diários (entre outros documentos) de pessoas escravizadas. Já leu sobre Esperança Garcia? Vale a pena.
      Analisando toda a minha formação escolar e acadêmica ainda pude ler alguns autores negros, mesmo que infimamente, como: Machado de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto. Inclusive encontrei algumas pesquisas que já trabalham esses autores no ensino de história. Tem uma dissertação bem interessante do ProfHistória pela UFRGS, realizada pelo professor Raul Costa de Carvalho, que utilizou contos machadianos para trabalhar o conceito de escravidão e paternalismo em sala de aula, intitulada “ENSINO DE HISTÓRIA, COTIDIANO E LITERATURA: Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis”.
      Penso que para o uso das fontes precisamos nos preocupar em ter clareza dos nossos objetivos de aprendizagem, alinhar a problematização, criar/pensar na metodologia, deixando isso de forma compreensível para o alunado, e sempre inquietar.
      No ano passado tivemos a publicação de produções importantes, como o livro “O Avesso da pele” do escritor Jeferson Tenório e o livro “Torto Arado” do Itamar Vieira Jr, ambos são bem interessantes para analisarmos a religiosidade de matriz africana.
      Penso que um ponto fundamental nas minhas escolhas das obras literárias afro-brasileira de autoria negra prima a valorização da história e cultura afro-brasileira e africana. Nesse sentido penso que saímos dos estereótipos.

      Continuo na postagem seguinte...

      Excluir
    2. Continuando...

      Vou tentar exemplificar, no livro Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus descreve momentos que sofria racismo, em que seus manuscritos eram negados por ela ser negra e ela, ainda assim, dizia que gostava de ser preta, gostava do cabelo crespo, e que se tivesse reencarnação gostaria de voltar preta. Como pode uma mulher que passou por tantas dificuldades, inclusive por sua negritude, se afirmar de forma tão assertiva?
      No poema da Conceição Evaristo “Vozes-Mulheres” podemos refletir o sentimento de revolta e resistência, ou seja, nossas sujeitas, as mulheres negras não são descritas como passivas as opressões que vivenciaram.
      Tem um conto muito lindo da Conceição Evaristo, chamado Fios de Ouro, está no livro Leves enganos e outras parecenças. Nele uma mulher negra que fazia parte de uma comunidade de pessoas escravizadas começou a notar que com o passar o tempo seus fios cabelos passaram a virar fios de ouro, eles eram utilizados para comprar a alforria dos seus. Percebo nessa metáfora/no realismo mágico da escritora uma forma de valorizar a ancestralidade no simbolismo do cabelo, a liberdade é uma forma de subverter uma realidade opressora, uma história difícil/traumática.
      Tem um artigo bem relevante da Conceição Evaristo, “Literatura negra: uma poética da nossa afro-brasilidade” que discute a literatura negra como afirmação.
      Por que digo isso? Personagens negras/os sempre estiveram na nossa literatura o problema é que não eram protagonistas, por muitas vezes eram representados de forma animalesca, submissa e objetificada. Lembremos de Bertoleza no livro O cortiço; de Tia Anastácia em Caçadas de Pedrinho etc.
      Como professores de história também é possível e frutífero confrontarmos essas fontes de diferentes autorias em sala de aula, no intuito de provocar a crítica pela multiperspectividade, análise sob diferentes pontos de vista em narrativas literárias.
      Espero ter conseguido responder.
      Abraço,
      Janaina Rodrigues Pitas

      Excluir
    3. Oi. Muito obrigado pelo cuidado na resposta. Buscarei mais textos dentro dessa perspectiva. Jackson Alexsandro Peres

      Excluir
    4. Oi. Muito obrigado pelo cuidado na resposta. Buscarei mais textos dentro dessa perspectiva. Jackson Alexsandro Peres

      Excluir
  7. Olá, Janaina. Estou encantada pelo seu trabalho! Penso que é um incentivo a conhecer a riquíssima literatura afro-brasileira, tanto para os alunos quanto para os professores de História, visto que ainda existe uma relutância em reconhecer a literatura com a importância que ela merece. Sobre o exercício proposto, você acredita ser possível trabalhar em conjunto com esses livros, quadrinhos (como “Confinada”, da Triscila Oliveira e Leandro Assis) ou músicas, sem perder o objetivo principal? Até mesmo como forma de exemplificar como os alunos podem produzir narrativas com base na temática trabalhada.

    Att.
    Ana Claudia Pereira Mota

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Ana Cláudia. Obrigada pela leitura e questão.

      Sim, penso que levar livros, quadrinhos, músicas etc., pode ser riquíssimo na construção do conhecimento histórico em sala de aula (presencial e/ou virtual).

      Li uma pesquisa de um professor de história que tinha como objetivo trabalhar o conceito de escravidão, para isso ele levou para sala de aula as seguintes fontes históricas:
      - Contos do Machado de Assis;
      - Pinturas do Jean-Baptiste Debret;
      - Impressos de jornais do período do Segundo reinado no Brasil.
      Foi interessante porque a partir da problematização e objetivo o professor foi aprofundando o diálogo.

      Pensando na Carolina Maria de Jesus, tem tantas fontes (no formato impresso e digital) para levarmos para sala de aula:
      - Livro Quarto de despejo – Carolina Maria de Jesus;
      - História em quadrinhos Carolina – Sirlene Barbosa;
      - Músicas gravadas por Carolina Maria de Jesus (ver no youtube o LP quarto de despejo);
      - Vida e obra de Carolina Maria de Jesus em vídeo – contos ilustrados/cartum.
      Enfim, diferentes fontes, diferentes narrativas sobre a vida e obra de Carolina Maria de Jesus. O fundamental é estabelecer o objetivo, problematizar as fontes, considerar as especificidades, e orientar o nosso alunado para isso.

      Como você bem disse, nesse processo podemos estimular o alunado a produzir narrativas, sentidos e aprendizagem histórica.


      Abraço,
      Janaina Rodrigues Pitas

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.